A fim de garantir a melhor aplicação da Lei 11.101, de 2005, que rege a tramitação dos pedidos de recuperação judicial e falência e o sucesso do processo de tentativa de reestruturação das empresas, o Ministério da Fazenda organizou um grupo de trabalho para analisar e sugerir mudanças. O projeto busca modernizar o sistema recuperacional e assegurar impactos positivos sobre geração de emprego e renda, além de elevar a produtividade da economia. A expectativa de aprovação da nova lei de falências e recuperação judicial, assinada pelo presidente Michel Temer recentemente, pode ajudar a acelerar o número de pedidos, que tinha recuado em 2017 e voltou a subir no País.
Entre janeiro e abril deste ano, foram 518 solicitações, alta de 30% na comparação com igual período do ano passado. A recuperação esperada pelo mercado não aconteceu e a frustração com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) tem afetado o desempenho das empresas de todos os segmentos. No Estado, o plano de recuperação judicial aprovado mais recentemente foi o do grupo Ecovix. Representantes de diversas classes com valores a receber de um passivo superior a R$ 7 bilhões votaram as condições que permitirão a retomada da operação do grupo ligado à indústria oceânica e maior player do polo naval gaúcho. Segundo o Indicador Serasa Experian de Falências e Recuperações, de janeiro a março de 2018, foram requeridos 385 pedidos de recuperações judiciais, aumento de 19,6% do que o registrado no mesmo período de 2017, ou seja, 322 ocorrências. Nos três primeiros meses de 2018, as micro e pequenas empresas registraram 237 pedidos, seguidas pelas médias (91) e pelas grandes companhias (57).
Na comparação interanual, em março deste ano, foram requeridas 190 recuperações judiciais, aumento de 52,0% em relação a março/17. Já em relação a fevereiro, as demandas subiram 43,9%. As micro e pequenas empresas lideraram as solicitações em março de 2018, com 122 pedidos, seguidas pelas médias (40) e pelas grandes empresas (28). Muito possivelmente como resultado da queda no número de pedidos de recuperação judicial em 2017, o número de empresas que decretaram falência apresentou queda neste ano. No primeiro trimestre de 2018, foram realizados 296 pedidos de falência em todo o País, queda de 24,9% em relação aos 394 requerimentos efetuados no mesmo período em 2017. Dos 296 requerimentos de falência efetuados nos três primeiros meses de 2018, 160 foram de micro e pequenas empresas, 70 médias e 66 de grandes. O movimento de queda está atrelado à melhora nas condições econômicas desde o ano passado, que permitiu às empresas apresentarem sinais mais sólidos nos indicadores de solvência. A continuidade desse processo dependeria de uma retomada mais consistente da economia. Contudo, de acordo com o juiz da 1ª Vara de Falências e Recuperação Judicial de São Paulo, Daniel Carnio Costa, não foi o que aconteceu. “A melhora esperada na economia para este ano não se consolidou e a legislação começou a ser colocada mais à prova com o agravamento da crise econômica e empresarial no País”, destaca Costa.
A lei é de 2005 e foi implementada em uma fase em que o Brasil passava por um forte crescimento econômico. “O primeiro teste pelo qual a lei passou foi em 2008, durante uma crise que não atingiu o Brasil de forma muito contundente. Mas a partir de 2012 e de 2013 tivemos um impacto muito grande da nossa própria crise e aí sim nossa lei foi submetida a um teste real”, salienta o juiz. Segundo Costa, a experiência de 12 ou 13 anos de aplicação da lei mostrou, de maneira bastante clara, a necessidade de serem feitos alguns ajustes para que a lei tenha eficácia maior. “Mesmo assim, o Ministério da fazenda identificou a criação de um sistema de insolvência eficaz como um dos pilares da retomada econômica do Brasil”, releva o especialista. “A recuperação judicial, quando bem planejada e executada, é um excelente recurso para as empresas que se encontram com dificuldades no mercado. Como existe uma expectativa de que a nova lei irá dificultar o processo para as empresas, aquelas companhias que estavam avaliando a solução acabam acelerando a decisão para não se sujeitarem à lei nova e isto acaba por elevar os pedidos” comenta o especialista em recuperação judicial da Gutjahr & Schio Recuperação Judicial e Perícias, Guilherme Luis Gutjahr.
O novo projeto de lei deve estabelecer que a realização da assembleia geral não pode exceder 120 dias e perdurar por mais de 90 dias, caso suspensa. Conforme o Núcleo de Estudo e Pesquisa de Insolvência da PUC/SP (NEPI) em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) sobre os processos de recuperação judicial das varas especializadas da capital de São Paulo identificaram que a mediana do período de aprovação de um plano de recuperação judicial é de 386 dias e a média é de 507 dias. A morosidade no processo de recuperação judicial pode ser fatal às empresas, assim como a demora em ingressar com o pedido de recuperação. No Brasil, as organizações têm grande receio em entrar com os pedidos, o que acaba agravando os reflexos das dificuldades financeiras. Para Costa, “isso só vai mudar a partir do momento em que houver resultados mais efetivos” nos processos de recuperação judicial. “O medo se justifica. Hoje, se você entra com um processo de recuperação judicial e ele não é gerido de maneira adequada, o resultado vai ser a falência, que é o que acontece na maior parte dos casos”. Quanto antes for percebida a necessidade da recuperação judicial, maiores as chances de viabilidade e sucesso. E esta necessidade pode ser facilmente percebida através de um trabalho de consultoria empresarial, no qual diversos indicadores da empresa são analisados para verificar a viabilidade da medida. “A situação é criteriosamente analisada, para então serem listadas as medidas a serem tomadas para a recuperação. Como o processo normalmente é benéfico, acaba sendo uma opção bastante utilizada no âmbito empresarial” afirma o sócio da Gutjahr & Schio, Thyago Américo Schio.
Criação de varas regionais especializadas pode dar mais agilidade aos processos
Os processos de recuperação judicial envolvem não só a sobrevivência da empresa, mas de todo o sistema atrelado a ela – uma cadeia que vai dos trabalhadores que dependem dela para manter seus empregos até os fornecedores e credores. Os processos devem ser gerenciados no ritmo dos negócios, na maior parte das vezes diferente dos ritmos judiciais tradicionais. “Isso exige do juiz uma postura muito mais proativa e de velocidade decisória. Por exemplo, se a empresa em recuperação precisa de autorização judicial para vender algum ativo para pagar a folha de pagamento do mês que vem, eu tenho que decidir isso antes do mês que vem. Se demorar três ou quatro meses para decidir, ela não só não pagou aquela folha como já encerrou suas atividades, pois os funcionários não podem ficar trabalhando de graça. Como vai exigir essa agilidade de um juiz que tem que cuidar de uma série de outros casos e que muitas vezes não vai ter essa sensibilidade”, sintetiza Costa. Por isso, dentre as propostas de alteração da Lei de Recuperação Judicial está a criação de varas de competência regional especializadas, inspirada no modelo norte-americano. A ideia é que apenas um juiz especializado julgue todos os casos relacionados. “O juiz que lida com esse tipo de processo tem que ter uma formação multidisciplinar – em economia, negócios, contabilidade, e, mais do que isso, ter uma sensibilidade aguçada para notar a função econômica e social daquele negócio para a sua região”, salienta.
Para ele, o juiz tem de prover a distribuição equilibrada de ônus na recuperação, um meio termo entre o desejo do credor e do devedor. “Se a devedora exerce uma atividade viável, geradora de benefícios econômicos e sociais, eu tenho que exigir que ela gere esses benefícios. Não faz sentido uma empresas entrar em recuperação e encerrar suas atividades”, descreve Costa. O especialista fez parte da comissão de juristas convidada pelo Ministério da Fazenda para ajudar a elaborar o projeto que servirá de base para as mudanças na lei (ou até mesmo de uma nova lei) de recuperação judicial. Após passar por alterações de integrantes do ministério, o projeto foi encaminhado ao Congresso Nacional. Porém, segundo Costa, o resultado desagradou até mesmo a comissão de juristas, pois o conteúdo reflete, além dos pontos técnicos, decisões políticas tomadas pelo ministério. “Eles foram pinçando as ideias que achavam mais adequadas e o resultado final não foi exatamente aquilo que todos esperavam. A versão final do projeto tem coisas muito boas, coisas que estão sendo alteradas e não precisavam alterar e tem coisas que estão sendo alteradas para pior. Na minha opinião não haveria a necessidade de uma nova lei. Bastava alguns ajustes pra que a gente crie a estrutura adequada para que a lei seja aplicada”, pontua. Este ano, com a Copa do Mundo e a realização das eleições, a possibilidade de que algo desse porte seja apreciado por deputados e, após, senadores, é muito pequena. A expectativa é que a discussão seja retomada no ano que vem.
Perícia prévia é instrumento importante para obter o sucesso do plano
Outro ponto destacado pelo juiz Daniel Carnio Costa é a implantação da perícia prévia, metodologia criada por ele, aplicada na vara pela qual é responsável desde 2011 e já copiada em outros locais do Brasil inteiro. Basicamente, a perícia prévia busca obter uma verificação preliminar, feita por profissional com conhecimento técnico, para abastecer o juiz com informações adequadas antes de decidir pela recuperação judicial. Muito em razão da adoção dessa prática, o índice de sucesso em recuperações judiciais na 1ª Vara de Falências paulista supera a média nacional. Entre 2011 e janeiro de 2018, chegou a 81,7% – enquanto a média brasileira é de 23%. A isso, o juiz atribui também o fato de que a cada 10 processos iniciados nas suas mãos, oito tem plano aprovado pelos credores e cumprido pelo devedor por mais de dois anos – números bem maiores do que em outros tribunais. O método foi inspirado no modelo norte-americano chamado informal primary examination e, como explica Costa, não deve fazer uma análise da viabilidade do processo de recuperação judicial, mas dos documentos entregues pela organização e das suas operações. O levantamento serve para detectar irregularidades ou fraudes – ajudando a evitar a imposição aos credores de uma negociação que não terá contraprestação de interesse público ou social.
Costa lembra que quando a empresa pede a recuperação, tem de anexar uma série de documentos contábeis e cabe a um profissional capaz a avaliação da qualidade das informações prestadas – se ela está completa e consistente. Em um segundo momento ele deve ir até a empresa e constatar as reais condições de funcionamento da empresa – se a empresa continua funcionando, tem empregados, clientes e interesse em continuar existindo. “Ela pode estar em crise, mas tem que pelo menos gerar benefícios e poder ser recuperada. Caso contrário, iriamos iniciar um processo que não pode dar certo. Nosso objetivo não é ressuscitar empresas. É recuperar empresas que ainda estão vivas”, prevê o juiz. A perícia prévia ajuda a identificar hipóteses de empresas inexistentes que pediam recuperação, por que a ideia do devedor era resolver o problema dele, sem nenhuma contrapartida de interesse social, e fraudes. “Infelizmente existem casos em que o sujeito utiliza a recuperação como parte de um esquema fraudulento”, avisa. Nesses casos, o processo não é levado adiante. Porém, o resultado mais comum quando os processos não são aprovados pela perícia prévia é a constatação de irregularidade documental. “Quando isso é constatado, eu concedo à empresa um prazo para que ela conserte isso. E ela vai consertar sabendo exatamente o que tem que fazer, por que um técnico já fez uma análise e apontou para ela o que tem de fazer”, diz. Em média, 30% dos pedidos iniciais acabam não começando, realmente. Porém, pesquisa do Núcleo de Estudo e Pesquisa de Insolvência da PUC/SP que analisou todos os processos movidos nas 1ª (onde há perícia prévia) e 2ª Vara de Falências de São Paulo, revelou que esse índice é positivo. Quando não é feito o procedimento de avaliação anterior à abertura do procedimento, o número de indeferimento dos processos é de 40%. “A primeira impressão que se tem é de que onde se faz pericia prévia se indefere mais do que onde não se faz, mas na prática é diferente”.
Fonte: Jornal do Comércio