Nas duas últimas semanas, muito debate e desconforto foram produzidos em razão de suposta fiscalização da Receita Federal que teria por foco mais de uma centena de autoridades públicas. As informações vieram a público em razão do vazamento de um relatório que teria por objetivo investigar as condutas tributárias do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.
O abuso e ilegalidade do vazamento são manifestos: nos termos do artigo 198 do Código Tributário Nacional, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública e seus servidores, de toda e qualquer informação obtida em razão do ofício. As exceções a esse comando são restritas e limitam-se ao intercâmbio de informações entre autoridades, preservado o sigilo.
A despeito disso, porém, o que tem ocupado a mídia e deixado algumas autoridades desconfortáveis não é apenas o vazamento, mas a possibilidade de a Receita Federal exercer a fiscalização em si. Em ofício enviado ao presidente da Corte, Ministro Dias Toffoli, Gilmar Mendes pede a adoção de providências urgentes para apurar a iniciativa de auditores fiscais fiscalizarem a ele e a sua esposa sem qualquer fato concreto que o justificasse.
Afinal, a Receita Federal precisa de autorização judicial ou motivação extraordinária para investigar os rendimentos e patrimônios de autoridades públicas? É evidente que a resposta é um sonoro não. Autoridades públicas são cidadãos como outros quaisquer, que realizam fatos econômicos, cujos efeitos tributários devem ser analisados e investigados pela Receita Federal. A Constituição limita o foro especial por prerrogativa de função a situações restritas, as quais foram ainda mais delimitadas em julgamento recente do STF. A suposta figura da “malha fina privilegiada” simplesmente não existe.
Dito isso, um segundo passo deve ser dado. A apuração de fatos em curso tem fundamento na Nota nº 48/2018, da Coordenadoria Geral de Programação e Estudos (Copes) da Secretaria da Receita Federal do Brasil, que reporta o resultado das ações da Equipe Especial de Programação e Combate a Fraudes Tributárias, criada pela Portaria Copes nº 7/2017. Como o próprio nome indica, a equipe trabalha na identificação de indícios de fraude, que podem resultar tanto em infrações tributárias quanto penais.
Ao longo da Nota, são apresentados os critérios objetivos pelos quais foi feita a primeira seleção dos CPFs a serem analisados, deixando claro que o foco era, exatamente, a verificação das declarações de rendimentos e outras obrigações acessórias relativas a agentes públicos. Dentre outros elementos, destaca-se, por exemplo: valor de patrimônio superior a R$ 5 milhões ou valor de aumento patrimonial superior a R$ 500 mil ou, ainda, valor de dinheiro em espécie superior a R$ 100 mil. Sobre esse subconjunto, ainda aplicou-se o filtro “rendimentos isentos acima de R$ 1 milhão”, seja para o agente público, cônjuge ou sócios.
Como a Nota deixa claro, esses critérios foram objeto de refinamento ainda maior, para se chegar ao número dos 134 CPFs que serão objeto de análise individual, sem que isso implique, a priori, a existência de fraudes ou inadimplemento tributário – como, aliás, expresso na nota interna da Receita, no item 34.
A questão, então, é saber: a atuação da “Equipe Especial de Programação e Combate a Fraudes Tributárias” ou qualquer outra que seja criada para esse fim, que tenha por foco agentes públicos, é abusiva? Parece-me que não. Nos termos do artigo 145, parágrafo 1o da Constituição, para fins de realização da capacidade contributiva, é facultado à administração pública, nos termos da lei e observados os direitos e garantias individuais, identificar “o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
Não há qualquer ofensa a direitos ou garantias individuais na verificação da correção e coerência das declarações prestadas pelos “contribuintes-agentes públicos” ou em documentos outros que expressem sua capacidade contributiva. Compete à Receita Federal analisar a existência de indícios de fraudes e omissão de receitas que podem resvalar em crimes contra a ordem tributária, lavagem de dinheiro e outros. Isso não representa abuso de poder ou invasão das atribuições do Ministério Público Federal. Isso porque é à autoridade tributária que compete apurar os ilícitos tributários que podem configurar indícios de crimes correlatos.
A mera apuração dos ilícitos, que eventualmente, integram o antecedente da norma penal, não representa imputação de autoria ou tipificação penal da conduta. Essa competência é exclusiva do Ministério Público Federal. Porém, inclusive para fundamentar a representação fiscal para fins penais, a Receita deve se valer da apuração de todos os fatos, cujas consequências, frise-se, são também, e por vezes exclusivamente, tributárias. Defender o contrário representa transferir, para o Ministério Público, as atribuições de apuração do fato tributário nos casos em que a fraude tributária (em sentido amplo) compõe o tipo penal. Essa lógica é naturalmente descabida.
Se há algo a ser apurado na atuação da Receita, portanto, é apenas o vazamento de informações sigilosas à imprensa, com o fito aparente de constranger certas autoridades. Não a fiscalização em si, que está dentro das atribuições da Receita Federal e, a julgar pelo teor da nota em comento, é amparada em dados impessoais e de inegável relevância tributária. Vazamentos de informações sigilosas lamentavelmente tornaram-se corriqueiros no jogo baixo das disputas de poder político no Brasil. Em alguns casos, ironicamente, foram chancelados pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Fonte: Valor Econômico