No dia 17 de outubro, durante o seminário o “Novo Lucro Real”, organizado pela Associação Brasileira de Direito Fiscal (ABDF) e pelo Insper, Claudia Pimentel, Gilson Koga, Paulo Verçosa e Daniel Teixeira Prates, da Receita Federal do Brasil (RFB), expuseram projeto que pode revolucionar o atual modelo de tributação corporativa sob o lucro real. Ele deixa de lado, como ponto de partida, o “resultado contábil” para passar a tributar um “resultado fiscal”, construído a partir de algumas intersecções pontuais entre a escrita societária e tributária.
Hoje, o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) incidem, na sistemática do lucro real, sobre o lucro líquido contábil ajustado pelas adições e exclusões determinadas pela legislação tributária. Assim, o lucro contábil construído de acordo com as normas contábeis em vigor é ajustado para se chegar no resultado tributável (lucro real), base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
Os ajustes são basicamente feitos com a finalidade de excluir do lucro real os resultados contábeis não tributáveis (por exemplo, dividendos recebidos de pessoa jurídica domiciliada no Brasil), incluir valores que são tributáveis apesar de não comporem o resultado contábil (e.g., ajustes decorrentes da aplicação das regras de preços de transferência), ou ainda incluir valores que não são dedutíveis, a despeito de terem sido excluídos do lucro contábil (e.g., despesas não necessárias às atividades da empresa). Podem refletir escolhas legislativas no sentido de isentar receitas contábeis, criar benefícios ligados a deduções (não existentes na contabilidade), ou decorrer de simples diferenças temporais no reconhecimento fiscal de algumas receitas ou despesas (relativamente ao momento no qual seriam reconhecidas pela contabilidade).
O novo lucro real proposto pela Receita não mais partiria do “lucro contábil”, mas de um “resultado fiscal” decorrente da equação “receitas fiscais” menos “despesas fiscais”. As “receitas fiscais” seriam conceituadas de maneira principiológica, não exaustiva, incluindo receita bruta, ganhos, rendimentos, lucros etc. O conceito de “despesa fiscal” também seria principiológico e amplo, incluindo todas as despesas necessárias à atividade que sejam usuais e normais. Seria adotado, como regra geral, o regime de competência, devendo as empresas utilizar apenas algumas contas contábeis específicas na demonstração fiscal. Ao utilizar algumas contas específicas não afetadas por novas normas contábeis que venham a ser criadas, o novo lucro real buscaria uma convivência mais pacífica entre contabilidade e tributação, as quais coexistem no Brasil há muitas décadas de maneira frequentemente conflituosa, como veremos a seguir.
Tudo começou em 1850, com o Código Comercial. Observamos lá algumas poucas orientações colocadas como obrigações genéricas de elaboração e manutenção de registros contábeis. O Código blindava a escrituração contábil de quaisquer terceiros, inclusive autoridades, ao determinar que a exibição judicial dos livros só poderia ser ordenada em alguns casos específicos (art. 18), e que nenhuma autoridade, por pretexto algum, poderia ordenar diligência para examinar a escrituração mercantil (art. 17).
Mesmo com a criação do imposto de renda, em 1922, a Lei nº 4.783/1923 manteve a blindagem da contabilidade ao dispor que “as declarações dos contribuintes estarão sujeitas à revisão dos agentes fiscaes, que não poderão solicitar a exhibição de livros de contabilidade, documentos de natureza reservada ou esclarecimentos, devassando a vida privada.” (art. 3º, § 7º). Era a total segregação da contabilidade e tributação.
A autonomia total não podia sobreviver e, como esperado, mudou com o Decreto-Lei nº 1.168/1939, que passou a permitir o acesso dos funcionários do imposto de renda à escrita comercial dos contribuintes (art. 14). Nas décadas seguintes, a legislação tributária parece ter invadido a contabilidade para forçar sua normatização de forma a atender aos interesses do fisco.
A Lei nº 6.404/1976 (Lei das S.A.) buscou normatizar a contabilidade de forma mais detalhada para, entre outros motivos, tentar expurgar as interferências tributárias. Segundo sua exposição de motivos: “A omissão, na lei comercial, de um mínimo de normas sobre demonstrações financeiras levou à crescente regulação da matéria pela legislação tributária, orientada pelo objetivo da arrecadação de impostos.”.
No entanto, imediatamente após a edição da Lei das S.A., o legislador não resistiu à tentação e editou o Decreto Lei nº 1.598/1977, que supostamente seria uma norma tributária, mas que acabou por impor diversas regras afetando a contabilidade societária. Este mesmo fenômeno, de normatização fiscal da contabilidade, se repetiu nas décadas seguintes, afastando cada vez mais a contabilidade brasileira das melhores práticas contábeis.
Em 2008, a adoção do padrão IFRS (International Financial Reporting Standards) pelas Lei nº 11.638/2007 e Lei nº 11.941/2009 foi um grande avanço. Abandonava-se uma jabuticaba (o “Brazilian GAAP”) para se abraçar uma contabilidade internacional moderna. Foram quebrados paradigmas sobretudo com a prevalência da substância econômica sobre a forma. A essência econômica deveria então se sobrepor à forma jurídica, muitas vezes buscando-se, nas mensurações, uma visão prospectiva dos fatos atuais.
Tais ajustes contábeis profundos poderiam gerar impactos tributários relevantes. A neutralidade tributária das novas normas contábeis veio na mesma época, na Lei nº 11.638/2007, que incluiu o § 7º no art. 177 da Lei das S.A.[1]. Não foi, contudo, suficiente. Em meio a grande insegurança, a Lei nº 11.941/2009 criou o Regime Tributário de Transição (RTT), segundo o qual as alterações legais que modificavam os critérios de reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro líquido do exercício não teriam efeitos para fins de apuração do lucro real, devendo ser considerados, para fins tributários, os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007, na contabilidade revogada.
Apesar de algumas reclamações decorrentes da necessidade de se mantar uma “contabilidade RTT”, tudo ia relativamente bem até o Parecer PGFN nº 202/2013 e a IN RFB nº 1.397/2013 disporem que os lucros ou dividendos isentos seriam apenas aqueles obtidos pela observância dos métodos e critérios contábeis vigentes na contabilidade revogada (na contabilidade RTT), e não na contabilidade societária IFRS[2]. Novo cenário de extrema insegurança foi instaurado, com risco de tributação de dividendos distribuídos em excesso ao chamado “lucro RTT”, aparentemente apressando o término do regime de transição. Veio então a MP nº 627/2013, convertida na Lei nº 12.973/2014, para acabar com o RTT e editar normas de adaptação da antiga legislação tributária às novas nomenclaturas contábeis, bem como de neutralização dos efeitos tributários gerados pelo novo padrão contábil.
E não poderia ter sido diferente. A tributação deve atingir apenas o que realmente represente “renda” enquanto “acréscimo patrimonial” na data presente, observar os princípios da capacidade contributiva, da estrita legalidade e da tipicidade cerrada. Não se pode tributar com base em analogia e nem alterar definição, conteúdo e alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado. Por outro lado, a contabilidade, primordialmente baseada em atos infralegais, reflete a situação financeira da empresa de um ponto de vista econômico, estando profundamente baseada em análises subjetivas que buscam aferir riqueza a partir de um olhar prospectivo.
A Lei nº 12.973/2014 sacramentou a necessidade de busca pela neutralidade da contabilidade frente à tributação (art. 58). A modificação ou adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos, não tem implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria, competindo à RFB identificar os atos administrativos e dispor sobre os procedimentos para anular os efeitos desses atos sobre a apuração dos tributos federais. Havia a esperança de que, passada a intensa fase inicial de adaptação ao padrão IFRS, tudo ficaria bem, pois poucas normas contábeis seriam editadas para posterior neutralização pela RFB.
Só que não… já temos mais de 50 Pronunciamentos Contábeis editados pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), além de 23 Interpretações e 8 Orientações. E tudo isto sujeito a constantes e intermináveis revisões.
Segundo os números da própria Receita Federal, mais de 60% dos ajustes atualmente previstos na legislação do IRPJ decorrem dos novos critérios contábeis. As normas contábeis devem se proliferar cada vez mais, sendo necessárias mais normas de neutralização. O IFRS também está em evolução. A despeito de ser principiológico, contém número crescente de exemplos e regras. Sua subjetividade e complexidade só têm aumentado.
A verdade é que tributação e contabilidade estão se tornando cada dia mais incompatíveis. Elas têm valores e objetivos diversos. Seria necessária toda uma reforma legal e quiçá constitucional para permitirmos total integração entre elas. Sim, é verdade que muitas das inconsistências entre contabilidade e tributação correspondem a diferenças temporais. Mas, sem uma reforma, não seria possível à tributação aceitar os momentos de reconhecimento de receitas e despesas determinados pela contabilidade. Algo que ainda não é renda (para o direito tributário atual) não pode ter sua tributação adiantada para momento no qual ainda não o é. E pior, que talvez nem venha a ser. E mesmo se fosse questão de mero diferimento, quando falamos de Brasil, tributo que se paga hoje não necessariamente, por motivos diversos, será recuperado amanhã.
E a subjetividade da contabilidade pode resultar novamente na sua invasão pelo tributário. Se há subjetividade, o que farão os contribuintes? Interpretarão a norma para agradar os “clientes” da contabilidade ou para reduzir sua tributação?
Alguns alegam que um maior alinhamento da tributação à contabilidade faz com que a tributação neutralize a vontade do administrador e do sócio de inflar resultados. A tributação serviria como freio a essa vontade, pois geraria incentivo inverso no sentido de se reduzir o lucro tributável. Acontece que nosso mercado financeiro ainda é pequeno, as empresas abertas ainda são poucas, há enorme número de sociedades detidas privadamente e por poucos, inclusive famílias. Faz algum sentido violar princípios constitucionais e legais tributários, aceitar uma indevida intromissão da regra tributária na contabilidade e gerar imensa incerteza tributária para se ter um suposto “fiscal contábil”?
Dou razão aos contribuintes que têm medo de mudanças. “Gato escaldado tem medo de água fria”. Temem surpresas indesejadas, aumento de carga tributária ou mesmo não haver simplificação e terem que gastar ainda mais na adaptação a um novo sistema.
Mas não nos parece que o projeto da Receita está pronto e acabado. A própria RFB sinaliza que está sendo construído e gradualmente amadurecido frente às contribuições dos vários setores da sociedade civil. Aliás, há de se celebrar e parabenizar o Fisco federal por sua abertura e transparência ao debater com o mercado proposta legislativa de tamanha importância.
O que sugiro é evitarmos a rejeição de face, por preconceito e/ou medo. Contribuirmos para a construção desse projeto pode valer a pena. Para as grandes empresas, talvez não seja tão ruim seguir como estamos. Já gastaram milhões e milhões de Reais com seus sistemas de controle. No entanto, para as empresas médias e pequenas, o atual lucro real torna-se cada vez mais impossível. Talvez explique, dentre outros motivos, o fato de termos apenas 3% das empresas brasileiras no lucro real. Enquanto o regime do lucro real não for racionalizado, será difícil limitarmos o alcance dos regimes especiais (como o Simples e o lucro presumido).
Fica então minha provocação. Antes de rejeitarmos algo que ainda está sendo construído, tentarmos resolver um problema que, conforme a contabilidade moderna evolua, se tornará mais intenso tanto para o fisco quanto para o contribuinte. A oportunidade de ambos contribuírem para um novo desenho da tributação sob o regime do lucro real é uma ótima iniciativa de transparência e cooperação entre a administração tributária e sociedade civil.
Fonte: IBET