O sistema de impostos do Brasil viola todos os princípios consagrados para a tributação no consumo. Por isso, o sistema demanda uma reforma a fundo, e não pequenas alterações para “tapar o sol com a peneira”. A tributação sobre consumo deve ter um único Imposto sobre Valor Agregado (IVA), não cumulativo, com alíquota uniforme e cobrado no destino.
É o que defende a portuguesa Rita de la Feria, professora de direito tributário na Universidade de Leeds, no Reino Unido, e pesquisadora associada ao centro de estudos fiscais da Universidade de Oxford. “O Brasil tem o pior modelo de tributação sobre consumo que conheço no mundo”, diz Rita, que prestou consultoria sobre política tributária ao governo português de 2011 a 2012 e ao governo do Timor Leste (2015-2016), além de ter assessorado na implantação do IVA em países como Turquia, Uzbequistão, Moçambique e Angola.
Segundo Rita, a proposta da PEC 45 está nos moldes do que é recomendado para um IVA. Com tramitação na Câmara dos Deputados, a PEC 45 estabelece a criação de um novo tributo, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), criado em substituição
aos federais IPI, PIS e Cofins e ao ICMS estadual e ISS municipal. No modelo do IVA, o IBS proposto é não cumulativo, com alíquota de 25%. “O imposto proposto pela PEC 45 é o IVA que chamo de ‘slim’: simples, local, ou seja, bem adaptado à realidade brasileira, e moderno.”
Entre os piores problemas da tributação brasileira sobre consumo, avalia Rita, está a existência de cinco tributos diferentes, de várias alíquotas e isenções, além de a cobrança ser cumulativa. Para ela, é crucial que a tributação sobre consumo tenha um imposto só e uma alíquota uniforme para não se criar divergência de tratamento tributário entre bens e serviços. Assim que se muda o tratamento para um e não pra outro, diz ela, cria-se margem para a manipulação ou para a falta de transparência na classificação de um bem ou serviço.
Ela destaca que no Brasil, assim como em diversos locais, se discute um tratamento diferenciado para educação e saúde. Esse tratamento, diz ela, é para o setor privado, cujos serviços são consumidos pelos 10% da população de maior renda. “Faz sentido isentar ou tributar menos esses serviços?”, questiona.
Segundo Rita, estudo do FMI mostra que cerca de metade dos países que implantaram o IVA possui alíquota única para o imposto. Os IVAs mais antigos, como o europeu, diz ela, têm mais de uma alíquota. Mas os IVAs implantados a partir da década de 80, explica, têm em sua maioria alíquota uniforme. É o caso do imposto da Nova Zelândia, da Austrália, da grande maioria dos países da África e de parte da Ásia.
“Tenho lutado por uma alíquota uniforme na Europa”, diz Rita. Para ela, é difícil vencer as resistências contra uma alíquota uniforme. E, por isso, muitas vezes se fala em adotar algumas poucas alíquotas para depois unificar, o que, para ela, não é o caminho. “É mais difícil vencer a resistência de unificar três ou cinco alíquotas depois de já ter o IVA do que vencer a resistência de já implantar o IVA com alíquota unificada.”
Rita também alerta que é preciso cautela com uma reforma gradual na tributação sobre consumo, como a ideia de reunir primeiramente os tributos federais para depois incorporar o ICMS ou ISS, como têm defendido representantes da equipe econômica do governo federal.
“O argumento é de que a reforma gradual tem a vantagem de diminuir a resistência para aprovação de reformas. Mas na minha experiência isso não funciona, porque o capital político costuma ser todo gasto na primeira fase da reforma. O que acontece é que não se faz a segunda fase e ficamos com um sistema temporário para sempre”, diz Rita.
Foi assim em 1991, quando a União Europeia decidiu fazer mudanças no sistema do IVA, lembra a professora. Havia, segundo ela, uma resistência muito grande dos Estados-membros e na época foi adotado um sistema temporário. Foi fixado em lei, diz ela, que até 1996 a então Comissão Europeia estabeleceria um novo sistema.
“Mas em 1996 não havia força política para isso e por isso essa previsão da lei foi alterada para prorrogar o sistema temporário. Resultado: estamos agora em 2020 ainda com um sistema temporário.”
Para Rita, o Brasil parece reunir hoje mais condições políticas para aprovação de uma reforma tributária profunda. Há, nesse sentido, diz ela, percepção da necessidade originada internamente como também externamente. Ela lembra que representantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) já se manifestaram favoravelmente a uma reforma no Brasil com a adoção de um novo tributo sobre consumo que siga as diretrizes da organização, com um só tributo de base alargada e cobrado no destino. E o governo brasileiro tem sinalizado interesse em integrar a OCDE, salienta.
Segundo ela, o único país que adotou o IVA e voltou atrás foi a Malásia. Rita conta que o governo do país asiático tinha dificuldades para devolver aos contribuintes os créditos do imposto, o que acabava tornando o tributo cumulativo. “É preciso que o sistema do IVA mantenha recursos para fazer a devolução de créditos.” Para ela, a sugestão da PEC 45, de estabelecer uma instância que vai arrecadar e administrar o novo imposto, é muito importante nesse sentido.
“Esse é um ponto crítico muito importante porque as empresas precisam ter confiança no novo sistema, ter certeza de que vão receber os créditos rapidamente e de que o tributo será não cumulativo.” Questionada sobre a tributação dos bancos, Rita diz que é favorável à cobrança do IVA sobre o spread bancário. “Mas temos que ser honestos. Isso nunca foi tentado.”
Para ela, tributar o spread não necessariamente aumentaria o custo do crédito. Isso, explica, depende do nível de crédito. Ela conta que na Europa os bancos reclamam por não pagar IVA. Porque assim não podem tomar créditos e o imposto pago na contratação de serviços terceirizados vira custo. Isso, diz Rita, reduz a competitividade na concorrência com a oferta de linhas de crédito americanas ou australianas.
Rita participou ontem de debate sobre reforma tributária promovido em São Paulo pelo núcleo de estudos fiscais da Faculdade de Direito da FGV-SP.
Fonte: Valor Econômico / APET