Disponibilizado na página da SEF em 29/02/2012.
ICMS. Fundição de peças por encomenda. Moldes recebidos em comodato de seus clientes, por prazo indeterminado.
1. a saída de bem a título de comodato não constitui “operação de circulação de mercadoria”, não se sujeitando à incidência do ICMS.
2. o prazo previsto no art. 36, I, do Anexo 2 do RICMS-SC, para retorno da mercadoria ao estabelecimento do comodante, tem a simples finalidade de desencorajar a simulação de negócio jurídico não tributado, para encobrir negócio jurídico tributado.
3. havendo necessidade de prazo mais dilatado, o contribuinte deverá requerer regime especial “que concilie os interesses do fisco com os do contribuinte”, como previsto pelo art. 1° do RICMS-SC/01.
Disponibilizado na página da SEF em 29/02/12
01 – DA CONSULTA
Cuida-se de consulta sobre o tratamento tributário de ferramentais (moldes), recebido de seus clientes, sob regime de comodato, para a produção de peças fundidas em alumínio e ferro, sob encomenda, para a indústria automotiva.
Informa a consulente que “tais ferramentais permanecem no estabelecimento da consulente por tempo indeterminado. Em caso de cessação do contrato de fornecimento de determinada peça ou obsolescência do ferramental, a consulente procede à devolução destes bens a seus clientes comodantes”.
A consulta versa sobre a aplicação do art. 36 do Anexo 2 do RIMCS-SC que fixa em 180 dias o prazo de retorno de bens do ativo permanente ao estabelecimento de origem, prazo este que a consulente considera exíguo e incompatível com a atividade desenvolvida.
Invoca em apoio de seu entendimento o REsp. 159.832 SP (DJU de 24-9-2001), Súmula 573 do STF e a resposta à Consulta 22/2007, desta Comissão.
A informação fiscal, a fls. 19-20, verificou que a consulta cumpre os requisitos de admissibilidade.
02 – LEGISLAÇÃO APLICÁVEL
Constituição Federal, art. 5°, XIII e art. 150, parágrafo único;
RICMS-SC, aprovado pelo Decreto 2.870, de 27 de agosto de 2001, Anexo 2, art. 36, I, §§ 1° e 2°; Anexo 6, art. 1°.
03 – FUNDAMENTAÇÃO E RESPOSTA
A competência cometida aos Estados-membros pelo art. 155, II, da Constituição Federal, é para “instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadoria e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação”.
Tratando a consulta de bens integrados ao ativo imobilizado do remetente (utilidade material), podemos, de plano, afastar a hipótese de prestação de serviço (transporte e comunicação).
Para entender a abrangência do fato gerador do imposto, devemos pesquisar os conteúdos semânticos de “mercadoria”, “operação” e “circulação”.
É no direito comercial que vamos buscar o conceito de mercadoria, para fins de incidência do ICMS. Com efeito, dispõe o art. 110 do CTN que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal […] para definir ou limitar competências tributárias”.
Assim, entende-se por “mercadoria” o bem móvel, adquirido com finalidade de revenda. A intenção do adquirente é fundamental para a caracterização do bem como mercadoria e, portanto, para a incidência do ICMS. Já lecionava Hely Lopes Meireles (Imposto Devido por Serviço de Concretagem. Revista dos Tribunais. Ano 62, Julho/1973, vol. 453, pp. 45 a 52):
“Mercadoria é toda coisa oferecida ao consumidor através da circulação econômica; enquanto a coisa não é posta em circulação econômica, não é mercadoria. O que caracteriza a mercadoria é a existência de um bem material posto em circulação econômica, para o consumo, mediante remuneração”.
Nesse mesmo sentido decidiu a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.125.133; RDDT 182: 227):
“4. A circulação de mercadorias versada no dispositivo constitucional refere-se à circulação jurídica, que pressupõe verdadeiro ato de mercancia, para ao qual concorrem a finalidade de obtenção de lucro e a transferência de titularidade”.
A seu turno, Hugo de Brito Machado (Aspectos Fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1997, p. 25) ensina que:
“Operações relativas à circulação de mercadorias são quaisquer atos ou negócios, independentemente da natureza jurídica específica de cada um deles, que implicam na circulação de mercadorias, vale dizer, o impulso destas desde a produção até o consumo, dentro da atividade econômica, as leva da fonte produtora até o consumidor”.
Está já sedimentada no direito tributário a compreensão de que “o simples deslocamento físico da mercadoria pelo seu proprietário, sem circulação econômica ou jurídica, não legitima a incidência do ICM” (STF, Segunda Turma, RE 93.523-1 AM; LEX 47: 119).
Mas não é esse o caso do comodato que, conforme dispõe o art. 579 do Código Civil (art. 1.248 do Código de 1916), “é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis”, perfazendo-se com a tradição do objeto. Conforme registra De Plácido e Silva (Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro: Forense, 2005):
“Derivado do latim commodatum, que quer dizer empréstimo, designa o contrato, a título gratuito, em virtude do qual uma das partes cede por empréstimo a outra determinada coisa, para que a use, pelo tempo e nas condições preestabelecidas. É, assim, expressão própria para designar o empréstimo gratuito para uso, ou, simplesmente o empréstimo de uso”.
“Quando o empréstimo não tem o prazo fixado, é chamado de precário, podendo, assim, ser exigida a entrega da coisa, quando aprouver ao comodante, regendo-se pelas mesma regras do comodato”.
O Comodato, segundo Nancy Andrighi e outros (In: Comentários ao Novo Código Civil, Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord), vol. IX, Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 43):
“O comodato é contrato temporário, que pode ser convencionado por prazo certo e determinado, ou por tempo indefinido, hipótese em que o tempo do contrato será aquele necessário para que o comodatário possa servir-se da coisa para o fim a eu se destina”.
“Do caráter temporário do comodato exsurge outra característica deste contrato, qual seja, a obrigação de, uma vez findo o contrato, restituir a coisa emprestada ao comodante”.
À evidência, “não constitui fato gerador do imposto de circulação de mercadorias a saída física de máquinas, utensílios e implementos a título de comodato” (Súmula 573 do Supremo Tribunal Federal). Com efeito, no comodato (i) não há mudança de titularidade, posto que o bem continua pertencente ao ativo imobilizado do remetente; (ii) o bem não se destina à mercancia, mas ao uso no estabelecimento do destinatário; e (iii) não constitui operação de circulação de mercadoria (que a impulsiona do produtor ao consumidor), pois, sendo empréstimo, deve retornar ao remetente.
Não nos alongaremos mais sobre matéria já tão debatida.
Todavia, o art. 36, I, do Anexo 2 do RICMS-SC dispõe que “fica suspensa a exigibilidade do imposto na saída de bem integrado ao ativo permanente, desde que deva retornar ao estabelecimento de origem no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, para prestação de serviço fora do estabelecimento ou com destino a contribuinte que o utilizará na elaboração de produtos encomendados pelo remetente”. O § 1° do mesmo artigo deixa claro que o tratamento tributário aplica-se também à saída de moldes, que é o caso da consulta. O § 2° prevê ainda a suspensão do imposto no retorno do bem (o molde) ao estabelecimento remetente.
A leitura do dispositivo desperta no nosso espírito algumas indagações:
O dispositivo regulamentar alcança o comodato?
O referido art. 36, I, trata da saída de “bem integrado ao ativo permanente com destino a contribuinte que o utilizará na elaboração de produto encomendado pelo remetente”. O dispositivo não especifica a que título ocorre a saída o que inclui a saída a título de comodato de “moldes”, para a fabricação de peças encomendadas pelo remetente.
No caso particular, o comodato não representa uma “liberalidade” do comodante ou um “benefício” ao comodatário, posto que o comodante tem interesse no comodato. Essa circunstância, porém, não descaracteriza o comodato como tal. A intenção do comodante não integra a definição do instituto.
Qual o sentido da expressão “suspensão da exigibilidade do imposto”, se o comodato não constitui fato gerador do ICMS?
Na hipótese, a interpretação meramente literal ou gramatical deve ser superada, pois, com efeito, a exigibilidade do imposto somente pode ser suspensa se este for exigível, o que não é o caso. Trata-se, sem dúvida de uma atecnia do legislador. Se o comodato não é fato gerador do ICMS, o Fisco não pode exigir o imposto sobre a saída de bem a esse título. Logo, se o imposto não é exigível, sua exigibilidade não pode ser suspensa.
Dispositivo regulamentar revela-se via inadequada para introduzir obrigação tributária principal, já que a instituição de tributo é matéria de reserva absoluta de lei (CF, art. 150, I). Além disso, o Estado somente pode exercer o seu poder de tributar nos estritos limites da competência que lhe foi conferida pela Constituição.
Como vimos acima, o comodato não se caracteriza como “operação de circulação de mercadorias”, razão por que não está abrangido na competência impositiva do Estado.
O prazo referido no dispositivo representa uma “condição”, de modo que o seu descumprimento torna o tributo exigível?
Ora, se o comodato não é fato gerador do ICMS, o descumprimento do prazo referido no art. 36, I, não tem o condão de tornar o comodato tributado por este imposto. Observa Alf Ross (Direito e Justiça. Bauru (SP): Edipro, 2003, p. 157) que “os problemas lógicos da interpretação são os que se referem às relações de uma expressão com outras expressões dentro de um contexto”. Entre outros problemas, destaca-se o da inconsistência: “existe inconsistência entre duas normas quando são imputados efeitos jurídicos incompatíveis às mesmas condições factuais”. Assim, pretender que o descumprimento do prazo referido resulte em exigibilidade de um imposto que o Estado não tem competência para exigir, seria construir uma norma inconsistente com o ordenamento jurídico.
Deve-se entender que o legislador, ao fixar um prazo para o bem dado em comodato retorne ao comodante, pretendia desencorajar ou dificultar a utilização do comodato para disfarçar o que seria, na verdade, uma compra e venda. Retornando o bem no prazo previsto pelo regulamento, estaria confirmado que tratava-se efetivamente de comodato. Todavia, a legislação tributária não pode interferir mais que o necessário na liberdade de contratar e na organização dos negócios dos particulares.
Com efeito, entre os direitos e garantias fundamentais consta o do “livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (CF, art. 5°, XIII). E, ao tratar dos princípios gerais da atividade econômica, a Constituição assegura “o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos” (art. 170, parágrafo único).
Assim, a aplicação do art. 36, I, deve sofrer as devidas ponderações. Conforme escólio de Humberto Ávila (Proporcionalidade e direito tributário. Direito Tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. Coordenação de Luis Eduardo Schoiueri. Vol. I, São Paulo: Quartier Latin, 2003, pg. 332):
“O exame da proporcionalidade aplica-se sempre que houver uma medida concreta destinada a realizar uma finalidade. Nesse caso, devem ser analisadas as possibilidades de a medida levar à realização da finalidade (exame da adequação), de a medida ser a menos restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade (exame da necessidade), e de a finalidade pública ser tão valiosa que justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em sentido estrito)”.
Podemos afirmar com segurança que a finalidade da medida concreta (prazo para retorno do bem), prevista no art. 36, I, é desencorajar a simulação de contrato de comodato (não sujeito à incidência do ICMS) para encobrir contrato de compra e venda (sujeito à incidência do ICMS). Pelo princípio da proporcionalidade, deve ser respeitada a celebração de contratos de comodato que necessitem de prazos mais dilatados ou mesmo por prazo indeterminado, admitindo-se, nesse caso, o direito de investigação do Fisco.
Constatando-se que o contrato de comodato serve apenas para encobrir contrato de compra e venda, caso em que o ônus probatório é do Fisco, poderá ser desconsiderado o negócio jurídico praticado “com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”, observados os procedimentos previstos no art. 20-A da Lei 3.938/66.
De acordo com Marco Aurélio Greco (Planejamento Tributário, 3ª ed. São Paulo: Dialética, 2011, p. 551), “se o fato gerador legalmente previsto ocorreu, a circunstância de estar disfarçado ou travestido de outro fato não afasta a incidência da lei tributária, cuja eficácia deverá ser assegurada, ainda que seja mediante a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos que o encobrem”.
Posto isto, responda-se à consulente:
a) a saída de bem a título de comodato não constitui “operação de circulação de mercadoria”, não se sujeitando à incidência do ICMS;
b) o prazo previsto no art. 36, I, do Anexo 2 do RICMS-SC, para retorno da mercadoria ao estabelecimento do comodante, tem a simples finalidade de desencorajar a simulação de negócio jurídico não tributado, para encobrir negócio jurídico tributado;
c) havendo necessidade de prazo mais dilatado, o contribuinte deverá requerer regime especial “que concilie os interesses do fisco com os do contribuinte”, como previsto pelo art. 1° do RICMS-SC/01.
À superior consideração da Comissão.
Copat, em Florianópolis, 6 de janeiro de 2012.
VELOCINO PACHECO FILHO
AFRE – matr. 184244-7
De acordo. Responda-se à consulta nos termos do parecer acima, aprovado pela Copat na Sessão do dia 16 de fevereiro de 2012.
A resposta à presente consulta poderá, nos termos do art. 11 da Portaria SEF 226/2001, ser modificada a qualquer tempo, por deliberação desta Comissão, mediante comunicação formal à consulente, em decorrência de legislação superveniente ou pela publicação de Resolução Normativa que adote diverso entendimento.
MARISE BEATRIZ KEMPA
Secretária Executiva
CARLOS ROBERTO MOLIM
Presidente da COPAT