Especialistas debatem trabalho infantil esportivo e artístico

Sandra Regina Cavalcante, mestre em Saúde Pública pela USP e advogada especialista em Direito do Trabalho, fez sugestões e advertências: “Não é justo que a exposição e o sacrifício da infância de alguns seja em benefício do divertimento de muitos”

Por trás do deslumbramento da sociedade com o trabalho dos artistas mirins há muito mais que talento e sucesso. Além dos inúmeros problemas levantados em cinco anos de pesquisa, Sandra Regina Cavalcante, mestre em Saúde Pública pela USP e advogada especialista em Direito do Trabalho, fez sugestões e advertências, e frisou: “Não é justo que a exposição e o sacrifício da infância de alguns seja em benefício do divertimento de muitos”.

A pesquisadora foi a primeira oradora a falar no quinto painel –  “Trabalho infantil esportivo e artístico: conveniência, legalidade e limites”. E logo de início fez um alerta, no sentido de que o trabalho infantil é proibido porque faz mal à saúde. Foi nesse contexto que ela deu início à pesquisa, ao se perguntar como era possível a atuação de bebês em propagandas, se é proibido o trabalho para menores de 16 anos.

Após assistir a gravações, ensaios e testes e entrevistar dez artistas mirins e seus responsáveis – em geral as mães – por cinco meses, ela constatou a falta de tempo para atividades essenciais ao desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes, como tempo para brincar, conviver com amigos e família.  Além disso, citou as longas esperas, constrangimentos, falta de privacidade, excesso de popularidade ou segregação na escola, ansiedade, acidentes e fadiga excessiva como alguns dos problemas enfrentados pelos artistas mirins.

Porém, a total falta de regulamentação do trabalho artístico da criança e do adolescente foi o principal problema apresentado por Sandra Cavalcante. Os empresários agem com critérios próprios, pois não há portarias, políticas ou campanhas sobre o assunto. Não há resistência dos familiares e a oposição do Estado é pouca ou inexiste. Os alvarás que autorizam a atuação infantil não estabelecem condições.  Quanto aos valores pagos, a pesquisadora ironizou: “A remuneração dos artistas mirins também é mirim”, pois eles recebem um terço ou até um quinto do profissional adulto pelo mesmo tempo de atuação.

Segundo a especialista em Direito do Trabalho, a pior situação verificada foi no trabalho de crianças em publicidade, pois não há necessidade de alvará permitindo a atividade infantil, porque na maioria das vezes o trabalho é realizado em um só dia. Com isso, ocorrem situações de risco, como a de uma menina que ficou pendurada em um cabo de aço por oito horas para gravar um comercial.

Após delinear o quadro atual, a pesquisadora defendeu a regulamentação e se posicionou contra a proibição absoluta da atividade artística infantil. Falou da necessidade de fiscalização de atividades simultâneas e da importância da escola participar desse processo, impedindo excessos por parte da família, comunicando as faltas da criança. Ela considera que a experiência pode ser positiva ou negativa, dependendo de características individuais, idade, tempo de duração da atividade, o tipo de exposição e principalmente a forma como isso foi conduzido pela família e pelos profissionais envolvidos com a criança, e a pressão exercida sobre ela.

Por fim, ao falar dos cuidados que se deve ter com os artistas mirins, Sandra lembrou a frase de Millôr Fernandes de que “viver é desenhar sem borracha”, e completou: “Não dá para apagar o que acontece na vida de cada um de nós e muito menos com essas crianças em desenvolvimento”.

Proteção

O segundo orador, o advogado, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), professor Antônio Galvão Terra, também falou sobre o trabalho infantil no meio artístico. Ele destacou que deve ser observada a distância entre as situações degradantes a que estão submetidas crianças que trabalham, por exemplo, em usinas de carvão ou lixões, e potenciais adversidades enfrentadas pelo chamado artista mirim.

Para o especialista, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê uma autorização específica para a participação infantil em trabalhos artísticos, cabe ao juiz impor condições para a devida proteção nos casos concretos. “Um tratamento específico pelo alvará judicial pode proteger mais a criança do que uma legislação generalista”, afirmou.

Conforme explicou o professor, nessas situações o afastamento de um contrato de trabalho não significa tirar a proteção da CLT, mas retirar do contexto o que tem de labor, reforçando o que tem de arte.

Cidade de Deus

O professor de Artes e Alfabetização de jovens e adultos do Colégio Santa Cruz (SP) Marcelo Pato Papaterra iniciou sua palestra mostrando aos participantes do seminário um trecho do filme brasileiro “Cidade de Deus”, em que aparecem diversos atores mirins em situação de extrema violência.  Ao final da projeção, o professor disse que fica indignado com o que considera uma violência: a prática comum de se usar crianças como atores e atrizes.

Na cena apresentada, uma criança é obrigada a dar um tiro no pé da outra, que chora implorando clemência. “É uma barbaridade”, disse o professor, que afirmou considerar desumano, no mínimo, colocar crianças em encenações como a retratada.

Papaterra disse que as crianças são brilhantes como atores, mas ele disse relevar essa capacidade artística, até porque, segundo, ele, talvez isso nem seja arte, uma vez que brincar e representar são atividades naturais para as crianças.

Como exemplo, o professor explicou como o diretor do filme Cidade de Deus – Fernando Meireles – conseguiu fazer a criança apresentada na cena chorar tão realisticamente diante das câmeras. De acordo com Papaterra, o próprio diretor revelou que o menino foi questionado sobre o que mais lhe causava medo. O menino respondeu que temia perder a mãe. Então foi dito para ele imaginar que a mãe havia morrido. A criança começou a chorar, e eles começaram a gravar a cena. Então, o que se viu, revelou o professor, foi uma criança chorando verdadeiramente “a morte da mãe”, e não um ator representando.

Usar crianças como atores e atrizes, segundo o professor, é a mesma coisa que os senhores de escravos faziam com as crianças escravas, quando mandavam elas brincarem e se divertirem na sala da casa grande, para deleite da família.

Ao concluir sua palestra, o professor afirmou que a necessidade de existirem leis claras para proteger as crianças é sintoma de uma grave doença social. Isso porque, segundo Papaterra, uma sociedade saudável deveria saber tratar bem de suas crianças sem precisar de leis.

Riscos e prejuízos

Rafael Dias Marques, procurador do Trabalho e coordenador nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (MPT), revelou que sua apresentação estava embasada no princípio da proteção integral. “O tom que permeia a minha fala é o tom da proteção integral. São trabalhos e nesses trabalhos nós temos que ter o tom do princípio constitucional da proteção integral e esse princípio é tanto mais observado quanto mais forem os autores que advogam pela sua defesa, pela sua luta” salientou Rafael.

De acordo com o procurador, o trabalho esportivo e o trabalho artístico são considerados trabalho, e como tal trazem riscos e prejuízos para a infância e para a juventude. A Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso XXXIII, proíbe o trabalho para menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. E a Constituição fala de qualquer trabalho, lembrou Rafael.

Mas ele lembrou, também, que o artigo 8º, inciso I, da Convenção 138 da OIT, traz uma exceção à regra geral da proibição. Esse dispositivo foi objeto de polêmica por muito tempo no MPT, por levantar a dúvida no sentido de que a Convenção poderia derrogar, excluir ou restringir o alcance do referido artigo da Constituição. Mas os procuradores do MPT chegaram à conclusão de ser aplicável a Convenção, além de estar em pé de igualdade com a Constituição e trazer um temperamento à regra geral da proibição. Com base em estudos e teses do direito internacional e alguns tratados internacionais, o MPT concluiu que a Convenção 138 é plenamente aplicável no território nacional.

O problema, para o procurador, é que a grande maioria das autorizações para o trabalho artístico infantil se dá em desrespeito ao que prevê o artigo 227 da Constituição Federal, e isso deve ser corrigido. Rafael disse, ainda, que deve se observar algumas condições especiais no trabalho artístico infantil, decorrentes de um princípio maior constitucional – o da proteção integral – e que o alvará que autoriza esse trabalho deve observar alguns aspectos, pois os concedidos atualmente “são simplórios e não desnudam a gravidade do tema e não trazem maior proteção para o exercício da atividade”.

O juiz deverá observar alguns aspectos na expedição do alvará, como a impossibilidade do trabalho em caso de prejuízo ao desenvolvimento biopsicossocial da criança e a devida aferição em laudo psicológico. E, antes de decidir pela autorização, deverá se valer de um perito, de um médico, psiquiatra, psicólogo que analisará o caso e seus efeitos, além do observar horário de trabalho, rendimento escolar, repouso, alimentação, frequência escolar e acompanhamento de um responsável. “Para nós, do MPT, é perigoso traçar um comentário apriorístico de que jamais uma situação de trabalho artístico poderá configurar relação de emprego, ela pode sim, configurar”, concluiu Rafael.

Trabalho esportivo

Para o MPT, o trabalho desportivo traz os mesmos riscos e o órgão tem vivenciado  situações de exploração, sendo importante distinguir entre o  desporto de educação – aquele que se dá nas escolinhas de futebol sem o viés de formação profissional –  e o desporto de rendimento. Nesse último, o MPT enxerga autêntica formação profissional na forma de aprendizagem e portanto somente poderá ser exercido por maiores de 14 anos, na forma da Constituição Federal, e isso deve ser feito em respeito aos demais direitos fundamentais, educação, saúde. Nesse sentido ele lembrou que neste ano morreram três adolescentes atletas (em formação) em situações de exaustão.

Equilíbrio

Último orador do dia, o advogado e mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) Carlos Eduardo Ambiel abordou o trabalho infantil esportivo.  Ele iniciou sua apresentação destacando que o esporte é consagrado por disposições internacionais como direito do ser humano, mas que é necessário se encontrar o equilíbrio entre o esporte como direito e o esporte como trabalho. “Sendo trabalho, há a proteção legal para a criança”, observou.

Ambiel citou dados que demonstram que, nos últimos cinco anos, têm sido liberados mais recursos estatais para o esporte de rendimento do que para o educacional, em oposição às previsões constitucionais.

A proteção integral à criança é compatível com um ambiente que favorece o esporte como aspecto de integração e desenvolvimento. Mas, para tanto, é necessária a delimitação de parâmetros claros pelo legislador, concluiu Ambiel.

Competência

O sexto painel do seminário “Trabalho Infantil, aprendizagem e Justiça do Trabalho”, que tem inicio às 8h45 desta quinta-feira (11), vai tratar da competência para a autorização judicial para o trabalho. Confira aqui a programação do evento.

(Lourdes Tavares, Demétrius Crispim, Mauro Burlamaqui, Lourdes Cortes – fotos: Aldo Dias)

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