O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a execução de pena após condenação em segunda instância, confirmado no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pode trazer consequências para a área tributária. Especialistas estudam a possibilidade de o contribuinte usar créditos tributários para o pagamento de impostos após vitória em tribunal estadual ou federal.
O mesmo caminho já foi seguido por juízes trabalhistas, que usaram o entendimento do STF para justificar decisões. Neste mês, a juíza Germana de Morelo, da 9ª Vara do Trabalho de Vitória, conferiu caráter definitivo a uma execução trabalhista determinando a alienação de bens da empresa para o pagamento ao trabalhador.
Decisão no mesmo sentido foi proferida em 2016 pelo juiz trabalhista da Vara Vasp, Flavio Bretas Soares. Ele determinou a liberação de R$ 36 milhões obtidos com a venda de fazendas que pertenciam ao ex-controlador da companhia, empresário Wagner Canhedo, para o pagamento de trabalhadores.
Na seara trabalhista, há a possibilidade de execução provisória. Na fiscal, porém, o artigo 170-A do Código Tributário Nacional (CTN) é claro ao exigir trânsito em julgado para compensação. Para advogados, a interpretação tradicional da expressão minimizaria o risco de pessoas serem presas por sonegação fiscal que se prove inexistente (ver abaixo).
Para o jurista Heleno Taveira Torres, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), se mantido o entendimento do Supremo de que com a decisão de segunda instância tem-se o trânsito em julgado na esfera penal, terá que valer também para matéria tributária. “Criou- se o entendimento [no passado] de que só no STJ [Superior Tribunal de Justiça] e no STF a lide se estabiliza, configurando o trânsito em julgado. Mas isso não está descrito no Código Tributário Nacional”, diz.
De acordo com o jurista, por analogia com a área penal, poderia-se afirmar que é possível fazer a compensação tributária a partir da decisão da segunda instância, que compreende os tribunais de justiça e tribunais regionais federais. “Até porque quando um recurso sobe para análise dos tribunais superiores seu efeito é somente devolutivo, não é suspensivo.”
A limitação do trânsito em julgado aos tribunais superiores traz impacto financeiro em dobro aos contribuintes, segundo Torres. Ele cita um caso que levou um ano e meio para sair da segunda instância e está parado à espera de julgamento pelo STJ há cerca de um ano. “A empresa está pagando juros em carta de fiança que precisa manter como garantia, mesmo após decisão favorável da segunda instância. O contribuinte fica com a garantia presa, além de ser impedido de compensar”, diz.
O advogado Edison Fernandes, sócio do FF Advogados, confirma que alguns colegas tributaristas já começaram a se movimentar com a decisão do STF. A lógica, diz ele, seria simples: “Se é possível prender um condenado, por que não poderia haver compensação de tributo com a decisão de segunda instância?”
Porém, Fernandes faz ressalvas. Para ele, esse entendimento faz sentido apenas quando a discussão tratar de matéria de fato, em que a última palavra é da segunda instância. “Em casos específicos, talvez se possa alegar efeitos tributários, especialmente em favor do contribuinte, a partir da segunda instância, como, por exemplo, a emissão de certidão negativa”, diz.
Mas o advogado destaca que na área tributária há muitas discussões de direito. Nesses casos, diz, “a posição dos tribunais superiores é fundamental para garantir o crédito fiscal e, com isso, a possibilidade da compensação tributária”.
Para o especialista em direito constitucional Saul Tourinho, do Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, a tese que aplica o entendimento do STF para a seara tributária merece ser estudada. O advogado lembra que o artigo 170-A foi inserido no CTN em 2001 e, antes, uma decisão liminar favorável já era suficiente para o contribuinte compensar créditos com débitos dos últimos cinco anos. “Essa nova tese traria um caminho do meio.”
Tourinho apenas pondera que, no processo penal, fatos e provas são perfeitamente demonstrados no primeiro grau, com a confirmação no segundo. “Já em matéria tributária, não é necessária uma testemunha, uma perícia ou uma delação. Trata-se de uma tese jurídica que pode ser revertida por meio de recurso especial [STJ] ou extraordinário [STF].”
O ministro aposentado do Supremo Sydney Sanches também considera que, na esfera penal, a materialidade (provas) e autoria são reconhecidas nas primeira e segunda instâncias. “Nas Cortes superiores só se discute se houve algum erro de direito”, afirma. “Além disso, em relação à matéria tributária se trata da aplicação de lei ordinária [CTN] e não da Constituição Federal”, acrescenta.
Para a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a tese não pode ser aplicada aos casos concretos porque a compensação antes do trânsito em julgado não está em debate no Supremo. “As situações não se confundem. No Supremo, o que se tem é ponderação entre a presunção de inocência e assegurar a efetividade jurisdicional”, diz o órgão por meio de nota.
A PGFN argumenta ainda que o direito à compensação após decisão de segunda instância traria insegurança jurídica. “Se prevalecesse o argumento de que a lei [CTN] deve ser desconsiderada, quando exige o efetivo término da discussão judicial para a compensação, o mesmo raciocínio afastaria todas as disposições legais, em todos os ramos do direito, que contemplam – literalmente – a exigência do trânsito em julgado”, afirma.
Fonte: Valor