Nos últimos dias de agosto, alguns jornais noticiaram que o Governo Federal pretende avançar na legislação do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas partindo de um resultado fiscal autônomo em relação ao resultado contábil apurado conforme as normas vigentes após a Lei 11.638/2007. A respeito dessa posição do Governo Federal, empresários e contabilistas demonstraram um certo temor ao cenário de instabilidade que essa medida aparentemente provocaria.

É forçoso admitir que a alteração na legislação do IRPJ promovida pelo Governo Federal possa ter como finalidade o aumento da carga tributária do contribuinte. Por isso, o temor. Entretanto, doutrinas avançadas no estudo do direito tributário no Brasil, a respeito do IRPJ, comprovam que um resultado fiscal independente do resultado contábil pode significar muito mais benefícios do que malefícios ao contribuinte, do ponto de vista da segurança jurídica. Esses aspectos serão tratados neste artigo com o objetivo de conscientizar os interessados a respeito do que se espera dessa medida do Governo Federal que venha prescrever os contornos da base de cálculo do IRPJ de maneira independente.

O contexto histórico-normativo
A partir da entrada em vigor da Lei 11.638/2007, o Brasil passou a adotar as denominadas normas de convergência contábil (ao padrão internacional) que têm como parâmetro normativo as IFRS (International Financial Reporting Standards). A introdução dessas normas contábeis no Brasil teve como objetivo atrair investimentos estrangeiros e aumentar a confiabilidade das informações gerenciais das empresas. Até a entrada em vigor referida lei, os padrões contábeis utilizados pelas empresas tinham foco na retratação dos eventos passados, sem maiores preocupações às expectativas de ganhos ou perdas futuras.

Em um artigo de minha autoria publicado na RDDT, destaquei que a finalidade da contabilidade, desde os primórdios, “é prover os usuários dos demonstrativos financeiros com informações que os ajudarão a tomar decisões” (AICPA[1]). Destaquei ainda, que um dos usuários dessas informações contábeis é o Estado, que se utiliza dessas informações produzidas para identificar a realização de condutas prescritas pelo direito positivo tributário[2].

Dessa forma, o Estado é um dos usuários da informação contábil justamente porque os resultados contábeis apurados em muito se parecia com os resultados que constituem a base de cálculo do IRPJ na sua concepção constitucional (artigo 153, III da CR/88). Contudo, um novo modelo de contabilidade, pautado em retratar não apenas o passado, mas também as expectativas de ganhos futuros, vem trazendo mudanças aos padrões contábeis utilizados no Brasil. Essas mudanças são consequências da evolução das ciências econômicas e não denotam qualquer preocupação com os pressupostos jurídicos da tributação da renda.

Muito frequentemente, as normas contábeis são editadas e reeditadas várias vezes pelas entidades que são responsáveis por padronizar a produção de informações contábeis. Esses órgãos fazem esse trabalho com vistas ao atendimento das ciências econômicas e ao que ela traz de mais moderno na previsão de perdas e ganhos futuros para a empresa. São ciências que colaboram e atuam em prol do processo de tomada de decisão por administradores e investidores.

De outro lado, os pressupostos constitucionais do direito tributário não permitem que a tributação seja realizada com base em ganhos futuros. Ao contrário das ciências econômicas, a ciência do direito visa garantir que o recolhimento de tributo seja feito apenas quando as transações comerciais sejam completamente materializadas no mundo dos fatos. No direito tributário não se verifica qualquer poder outorgado à administração tributária para tributação de expectativas de direito. Trata-se de uma questão de competência tributária constitucional que não se alinha com as competências dos órgãos técnicos que editam normas de padrões contábeis.

Com o objetivo de manter a utilidade das informações contábeis para fins de incidência do IRPJ após a introdução das normas de convergência no Brasil, a legislação tributária instituiu a regra da neutralidade fiscal (artigo 16 da Lei 11.941/2009 e, posteriormente, artigo 64 da Lei 12.973/2014). Assim, toda as novas regras editadas de acordo com os novos padrões contábeis, não ajustadas pela legislação tributária, seriam neutras para fins de apuração do IRPJ no Brasil, até que sobreviesse lei tributária específica que pudesse realizar os ajustes.

Ocorre que, ainda que a neutralidade fosse prevista, inúmeros foram os posicionamentos da Receita Federal do Brasil no sentido de utilizar novas regras contábeis para alargar a base de cálculo do IRPJ. Assim, a regra geral da neutralidade não foi suficiente para sanar as questões atinentes ao distanciamento da base de cálculo do IRPJ diante do novo resultado contábil das empresas[3]. A verdade é que, considerando os objetivos diferentes das ciências econômicas e das ciências jurídicas no trato das normas que determinam a apuração do resultado da empresa, é inevitável que o distanciamento ocorra cada vez mais dia pós dia.

Reflexões jurídicas sobre a autonomia da base de cálculo do IRPJ sobre o resultado contábil
Conforme mencionei, atualmente diversos estudiosos do direito tributário se dispuseram a analisar os efeitos de se continuar a utilizar o resultado contábil, apurado de acordo com as normas de convergência contábil, como ponto de partida para a determinação da base de cálculo do IRPJ. Em recente trabalho publicado, o Dr. Fernando Fonseca[4] apresentou proposta de diálogo da contabilidade com o direito tributário priorizando-se as características constitucionais no tocante à tributação da renda. Esse trabalho específico, dentre muitos outros artigos científicos na área, apresenta como a segurança jurídica pode ser mais bem preservada com a autonomia da base de cálculo do IRPJ.

Considerando que a tributação deve ser segura, respeitar o princípio da legalidade estrita, respeitar a boa-fé objetiva do contribuinte, estar em conformidade com o conceito constitucional jurídico de renda, a autonomia da base de cálculo do IRPJ pode ser uma oportunidade para as empresas brasileiras desempenharem um controle de legalidade mais eficaz sobre a competência tributária extrapolada. Além disso, a base de cálculo autônoma é uma garantia muito maior de que a neutralidade fiscal será respeitada em relação às novas determinações na seara contábil. Com efeito, se a base de cálculo do IRPJ tiver contornos precisos e específicos na lei tributária, não existirão reversões a serem feitas nem tampouco haverá campo para a tributação de ganhos irreais.

Ao contrário do que se possa imaginar, na visão geral do advogado tributarista, é muito mais provável que um controle de legalidade seja eficaz no combate de normas jurídicas que venham a atentar contra o conceito constitucional de renda do no combate de normas contábeis que visam retratar realidades econômicas diferentes daquelas perseguidas pelo Estado. É de se atentar que o procedimento de elaboração de informação fiscal específica, voltada à apuração da base de cálculo do IRPJ, é adotado por muitos países desenvolvidos, como é o caso da tributação da renda nos Estados Unidos e na Inglaterra.

A autonomia da base de cálculo do IRPJ em relação ao resultado contábil não significa, em hipótese alguma, desconsiderar por completo a norma contábil para fins tributários. A norma contábil continuará tendo seus pontos de convergência com o resultado fiscal na medida que a mensuração do patrimônio do contribuinte, em relação ao passado, ainda deve ser apurada pela contabilidade moderna. Entretanto, o ponto de partida é que será distinto, principalmente visto que os objetivos são essencialmente distintos e tendem a se distanciar ainda mais.

Há que se destacar que a apuração da base de cálculo do IRPJ que parte da apuração do resultado contábil (ainda que sejam feitas as reversões específicas e dispostas as regras de neutralidade) poderia estar sujeita à modificação por órgão estranho ao Poder Legislativo, fato que implicaria uma violação ao princípio da legalidade tributária. Ainda que a modificação não seja efetiva, o simples fato de se conceder esse poder a órgão alheio ao Poder Legislativo já configura atribuição ilegal de competência. Além disso, as constantes modificações das normas contábeis modernas não são acompanhadas pelo Poder Legislativo na mesma velocidade, o que resulta em um ambiente de maior instabilidade nesse método.

Isso posto, a proposta do Governo Federal não deve ser interpretada como uma ameaça irrestrita às empresas. Entretanto, é de suma importância consignar que, para que a autonomia da base de cálculo do IRPJ atinja os benefícios apontados neste artigo é necessário que o Governo Federal respeite os contornos constitucionais e legais da tributação da renda, sob pena de extrapolar sua competência tributária. De todo modo, havendo transgressão da competência tributária outorgada pela Constituição à União Federal, caberá aos contribuintes a judicialização das ilegalidades, fazendo com que elas sejam remediadas pelo próprio ordenamento, conforme suas regras inerentes ao Estado de Direito.

Conclusão
Diante de todo o exposto, verifica-se que a autonomia da base de cálculo do IRPJ diante do resultado contábil da empresa, por si só, não configura motivo de temor ou de preocupação a respeito do aumento da carga tributária do IRPJ ou de distorções na sua apuração.

Ainda que a medida do Governo Federal, em potencial, possa causar um ambiente de instabilidade, a verdade é que, em termos práticos e tecnicamente jurídicos, uma medida nesse sentido poderia implicar exatamente o contrário e conferir maior segurança jurídica aos empresários brasileiros no recolhimento de tributos incidentes sobre a renda.

[1] Definição registrada pelo American Institute of Certified Public Accountants.

[2] In O IRPJ e a dedutibilidade dos gastos na oferta pública de ações: nova perspectiva diante da alteração da legislação societária. RDDT, n. 212/78. São Paulo: Dialética, maio 2013.

[3] Como exemplo, tem-se a IN RFB n. 1.397/2013, cujos efeitos representaram um total contrassenso aos objetivos da nova contabilidade no Brasil. Sobre o ato normativo, veja-se: https://www.conjur.com.br/2013-set-29/maiza-alves-instrucao-normativa-1397-rfb-contrassenso

[4] In Imposto sobre a Renda: uma proposta de diálogo com a contabilidade. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

Por Maíza Costa de A. Alve

Maíza Costa de A. Alves é sócia da área tributária do Lott Advogados Associados e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico,