“A sua filha não é vítima de nada, ela tem que se responsabilizar”, disse uma médica pediatra de Rondonópolis (a 212 km de Cuiabá) à mãe de uma criança de 07 anos que havia sido estuprada pelo tio. Ao negar atendimento à vítima, que apresentava sequelas do estupro, advertiu a mãe que a responsabilidade era da criança, que teria “uma energia sexual que puxou o tio pra ter o sexo com ela”. No Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), a médica foi condenada em R$ 10 mil por danos morais.
Narra a mãe da menina que procurou a médica para uma consulta, pois a filha estava apresentando sequelas por conta de uma violência sexual praticada pelo próprio tio um ano antes. A médica, por telefone, disse que não gostaria de prestar atendimento à criança e fez o encaminhamento a outro profissional, porque não queria se envolver naquilo que chamou de “problema espiritual”.
Durante a conversa por telefone, que foi toda gravada, a médica disse que era espírita e que a criança tivera “outras vidas” e que, na vida presente, nasceu “com esse problema para resolver”, e justamente por isso “ninguém é vítima de nada”, pois se “o cara (agressor sexual) tem uma energia sexual, se liga a uma criança, ela (a criança) vai e pratica”, de modo que a criança teria responsabilidade pelo fato que ocorreu, “já (que) nasceu com um problemão para resolver nesta vida”, não sendo ela, portanto, vítima na história.
Na defesa, a médica invocou a liberdade de crença, consciência e de manifestação religiosa para justificar o discurso ofensivo. Nada feito.
No julgamento da Apelação os desembargadores entenderam que quem profere discurso de cunho religioso, pretensamente escudado pela liberdade de manifestação religiosa, extrapola os limites da boa conduta social e pratica ato ilícito gerador de dano moral indenizável. Professando sua crença, ofende profundamente o interlocutor, atribuindo-lhe responsabilidade pela violência sexual sofrida em tenra idade, por supostas condutas imorais praticadas em vidas passadas.
O entendimento é respaldado pelo artigo 5º, VIII, da Constituição Federal, que diz que não se pode invocar liberdade de crença religiosa para eximir-se de obrigação legal a todos imposta, como o dever de respeito à dignidade da criança e a proteção a sua saúde física e psicológica, especialmente porque o direito à livre manifestação religiosa não é absoluto e não pode justificar a profissão de discurso de ódio.
Família e a criança
O advogado da família, Bruno de Castro Silveira, relata que a conversa só foi gravada porque a mãe da menina trabalha no sistema penitenciário e recebe constantes ameaças por telefone, por isso passou a gravar todas as ligações originadas e feitas pelo telefone pessoal.
Bruno explica que a cliente se sentiu muito constrangida e humilhada com as informações da médica, por isso decidiu recorrer ao Judiciário para ver o seu direito reconhecido. “Eu li o voto do desembargador relator para minha cliente e ela se emocionou. Ficou satisfeita com a decisão e acredita que terá um efeito pedagógico”, informa.
A criança ainda com sete anos, continua fazendo acompanhamento psicológico por conta da violência sexual. Bruno explica que ela não teve conhecimento das ofensas da médica, para não agravar ainda mais a situação.
Falta de respeito e profissionalismo
A presidente do Conselho Regional de Medicina de Mato Grosso (CRM/MT), Maria de Fátima de Carvalho Ferreira, explica que qualquer profissional médico pode não querer atender um paciente por convicções pessoais, desde que não seja caso de urgência ou emergência. “Se for um atendimento elitista, o médico pode invocar razões pessoas para não atender, mas desde que não haja discriminação e preconceito”, explica.
A presidente argumenta que a relação entre médico e paciente tem que ser clara, respeitosa e despida de preconceito e discriminação. “Nada justifica a falta de respeito, de credibilidade e profissionalismo”, informa.
O Conselho Regional de Medicina já abriu uma sindicância para apurar o comportamento da médica de Rondonópolis, em caso de condenação as penas variam de advertência até a suspensão do exercício da profissão.
Liberdade religiosa tem limite
O professor Robson Salustiano, especialista em Direito Público e Direito Agroambiental e professor titular de Direito Constitucional no Centro Universitário UNIC, explica que qualquer pessoa pode defender a sua liberdade religiosa, o que é extremamente importante do ponto de vista democrático, mas, assim como os demais direitos fundamentais, deve encontrar limites de modo a assegurar o bem comum.
“É certo que o Estado não pode privar ninguém de professar determinada crença, no entanto, esse direito somente será mitigado num dado caso concreto, quando estiver em conflito com outros direitos fundamentais, ou quando contrariar a lei, o sossego público ou a moral e os bons costumes”, informa.
Além disso, o professor Robson relata que a religião tem um aspecto íntimo, pessoal. E não há como obrigar alguém a acreditar em algo abstrato e que, por definição, não é testável. “É importante ressaltar, contudo, que tal liberdade religiosa reflete a carga valorativa do princípio da dignidade da pessoa humana, pois as convicções religiosas não podem prevalecer perante o bem maior que é a vida, sob todas as acepções”, finaliza.
Fonte: Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT)